VII - A aparição
Martim Sénior apressou-se a trancar as portas e em boa hora o fez; a população começou a reunir-se à porta da casa do Dr. Fonseca.
Zé Tó, após se recompor, dirigiu-se a Martim Sénior:
- Mas que raio andaram os dois a fazer?!
- Nós não fizemos nada!
- Pelas barbas de Neptuno! Chego aqui e dou de caras com dois cadáveres, quando só devia haver um! Com cabeça e sem vómito!
- Padre, isto já estava assim quando cá chegámos! Menos a Dona Francisca.
- Têm muita coisa para explicar em muito pouco tempo!
- Padre, ouça, por favor!
- Não tarda abro as portas e depois têm de lidar com o povo!
- Isso não, Padre! Pense na Jessica! Vou tentar explicar tudo!
Igor estava quase a chegar à aldeia. Sabia que era inútil tentar parar o pobre cavalo, pelo que saltou em andamento e aterrou suavemente na berma da estrada. Mais tarde o pobre animal voltaria sozinho para o castelo. Escondeu-se rapidamente, enquanto o cavalo continuou o seu caminho.
Martim tentava explicar-se a Zé Tó:
- O Dr. Fonseca foi executado à moda antiga.
- O que queres dizer com “moda antiga”?
- Há muitos anos, um mal terrível viveu no castelo abandonado.
- Que tipo de mal?
- Dizia-se muita coisa… Falava-se de um morto-vivo…
- Isto está cada vez melhor.
Martim Júnior assistia ao diálogo em silêncio:
- Sim, Padre, um ser nem morto nem vivo, que caminha como os homens e que lhes bebe o sangue. Nosferatu.
- Nosferatu?
- Sim, o anti-Cristo.
- Anti-quem?
- Cristo. Um vampiro, padre.
- Vampiro?
- Sim, a encarnação do mal no corpo de Vlad Tepes!
- Opá, tudo bem, blá blá. Mas que tem isso a ver com os Galhões?
- Galhão.
- Pois.
- Encontrámos o Dr. Fonseca com uma estaca no coração e com a cabeça espetada noutra estaca; essa é a forma de matar vampiros. Foi assim que, quando eu era garoto, a população executou Vlad Tepes.
- Continuo na mesma.
- Padre, eu sei que não faz sentido, mas pense; por que motivo íamos mutilar o corpo do Dr. Fonseca?
- Foi isso que ainda não explicaste.
- Padre, o importante agora é que a Jessica não veja isto. E temos de resolver este mistério, antes que fique pior.
- Pior?
- Sim. Lembro-me dos ataques do vampiro. Nunca percebemos porquê, mas eram sempre precedidos por uma aparição maléfica e destruidora…
- Aparição?
- Sim, padre. Um demónio, um fantasma!
- Diabos, que tipo de fantasma?
Antes de Martim responder, o cavalo de Igor entrou com a carroça na rua principal, arrasando tudo pelo caminho. A população correu para dentro das casas, a gritar:
- O CAVALEIRO! O CAVALEIRO FANTASMA VOLTOU!
VI - O padre Zé Tó
O padre Zé Tó nem sempre fora padre. Zé Tó era um pirata português cujo barco tinha sido afundado há 3 anos por um galeão de guerra ao largo da costa da Roménia. Foi um dos poucos sobreviventes do naufrágio e foi o único a conseguir fugir à perseguição em terra.
Perto da Transilvânia, viu uma carruagem acidentada que transportava o novo padre da aldeia. O padre Zbrimatovovivilicic; ele e o condutor estavam mortos, mas Zé Tó enterrou os corpos, escondeu a carruagem e apoderou-se das malas e dos documentos do padre.
Os habitantes nunca suspeitaram dele; sempre pensaram que o seu cabelo escuro, sujo e comprido, a barba por fazer, o bigode farfalhudo, a baliza nos dentes e a unha comprida no mindinho fossem sinais de modernice.
Optou contudo por deixar de usar o fio de ouro ao pescoço e a pulseira de prata cravejada de caveiras, pelo menos na missa.
Martim Sénior, apressado, encontrou Zé Tó à entrada da Igreja.
- Bom dia, padre Zbrimatovovivilicic.
- A paz esteja contigo, Martim, e trata-me por Zé Tó.
- Padre, não temos muito tempo. Venha comigo, rápido.
- Aonde?
- A casa do Dr. Fonseca. Lá explico tudo, mas venha agora.
- Mas que bicho te mordeu?
- Padre, é imperativo que venha, agora!
- Pronto, homem, vamos lá!
Quando Martim Sénior e Zé Tó entraram na sala do Dr. Fonseca, encontraram o caixão aberto, Martim Júnior sentado a chorar e a Dona Francisca esticada no chão, inanimada e com os olhos arregalados.
Martim Sénior agarrou vigorosamente os braços do filho:
- O que é que fizeste Martim?! O que é que fizeste?!
- Pai, não pude evitar! – Soluçou.
- Não pudeste evitar o quê?! O que fizeste?!
- Pai, a Dona Francisca quis ver o Dr. Fonseca…
- E deixaste-a vê-lo neste estado?
- Não, eu tentei evitar… mas ela forçou-me. Queria ver o Dr. Fonseca e queria ver o Dr. Fonseca, queria saber por que razão tínhamos fechado o caixão… Depois começou a gritar… Começou a ficar histérica e empurrou-me… Tentei segurá-la mas ela voltou a empurrar-me com tanta força que tropecei no tapete e caí… Quase que bati com a cabeça no rodapé da lareira…
O choro de Martim intensificou-se:
- Foi então que ela abriu o caixão e soltou um grito de terror!
- E teve um ataque?
- Não, deu dois passos atrás, tropeçou no tapete e bateu com a cabeça no rodapé da lareira!
- Minha nossa Senhora!
- Está morta, Pai! Morta!
- Meu Deus do Céu!
- Morreu!
- Virgem Santíssima!
- Foi-se, Pai! Foi-se!
- Santo Deus!
- Tropeçou, bateu com a cabeça…
- Cristo Santíssimo!
- … e ficou ali parada, a olhar para mim!
- Santa Maria!
Zé Tó assistia embasbacado à cena. Quando se aproximou do caixão e viu o cadáver decepado coberto de vómito, fechou os olhos e virou logo a cabeça para o lado, mas foi de mais para ele; não conseguiu conter-se e vomitou o pequeno-almoço por cima do cadáver da Dona Francisca.
V - Bom dia, Dona Francisca
Martim Sénior não criticou o filho pelo seu descuido. Compreendeu-o, aquilo era de mais até para ele, quanto mais para o seu filho mais novo.
- Estás bem, filho?
- Estou, pai, estou…
- Queres sentar-te? Eu trato do resto.
- Não, pai. Estou bem, a sério.
- Vá, deixa-me fechar o caixão. Recompõe-te, pronto.
A Dona Francisca tinha acordado mais cedo do que a irmã e a filha. Queria ser a primeira a chegar, queria ter uns últimos momentos sozinha junto do seu amado. Entrou chorosa na sala:
- Bom dia, Martim. Bom dia, Martim.
- Bom dia, Dona Francisca.
- Bom dia, Dona Francisca.
Martim e Martim entreolharam-se, os dois com os braços em cima da tampa do caixão.
- Ai, que desgraça que tinha de me acontecer.
Pai e filho voltaram a olhar um para o outro. Martim Sénior respondeu, tentando ser o mais natural possível:
- Pois é, Dona Francisca, o mundo é injusto.
- Sim, eu sei. – Respondeu, conformada. – Olhe, encontrei o padre Zé Tó na igreja, ele quer falar consigo sobre o funeral. Pode ir lá ter com ele?
Martim Sénior hesitou, mas não tinha como recusar. Olhou preocupadamente para o filho e respondeu:
- Com certeza, vou agora mesmo.
Antes de sair da sala, voltou a olhar para o filho e fez-lhe sinal para manter a tampa do caixão fechada.
A Dona Francisca dirigiu-se a Martim:
- Oh, meu filho, também estás triste, não estás?
- Estou sim, Dona Francisca. Muito triste.
- Estás tão pálido, meu querido. Sentes-te bem?
- Eu aguento-me, Dona Francisca.
- Oh, meu rico filho, és o homem certo para a minha filha.
- Sou sim, Dona Francisca.
- Gosto de ti desde que eras pequenote, eras tão querido.
- Era pois, Dona Francisca.
- O meu querido Fonseca também gostava muito de ti.
- Pois gostava, Dona Francisca.
- É a lei da vida, o mundo é dos jovens.
- Pois é dos jovens, Dona Francisca.
A cada frase, a Dona Francisca aproximava-se do caixão. Martim ficava cada vez mais nervoso:
- Ele ia gostar tanto de vos ver casar…
- Pois ia, Dona Francisca.
- Só falava dos netos que queria ter, do que lhes gostava de ensinar.
- Pois era, só falava dos netos, Dona Francisca.
- Estás mesmo bem, Martim?
- Claro que sim, Dona Francisca.
- Mas… já fecharam o caixão?
IV - "Poc"
Amanheceu.
Martim e seu pai, Zé Martim Sénior, foram os primeiros da aldeia acordar. Vestiram as indumentárias fúnebres e dirigiram-se a casa da família Galhão. Lá tratariam dos últimos preparativos e ficariam à espera da família do defunto, dos restantes habitantes e do padre da aldeia, o Zé Tó.
Quando os cangalheiros entraram na sala de estar da família Galhão, nada neste mundo os poderia ter preparado para o que encontraram, mas já lá vamos.
Igor acabara de colocar os estribos no cavalo. Tinha de ir à aldeia procurar por Jessica, tal como o seu mestre lhe ordenara. Escancarou as portas do estábulo e subiu rapidamente à carroça. O pobre cavalo, mal sentiu Igor atrás dele, saiu desesperado a correr sem ser preciso chicoteá-lo. Igor já estava habituado a este comportamento e como iam em direcção à aldeia, era o que interessava.
Martim pai e Martim filho contemplavam estupefactos aquele horror; o corpo de Fonseca pregado ao caixão, a poça de sangue no chão que tinha escorrido por um fio na estaca e a cabeça do pobre defunto com a boca aberta espetada na metade do candeeiro:
- Pai, o que é isto?
- Raios me partam, filho…
Como sabemos, Martim filho começara há pouco no negócio; foi algo que nunca lhe agradou, mas que suportava para ter o dinheiro para se casar com Jessica. Contudo, por muito que lhe custasse mexer em corpos, aquilo era algo muito pior do que alguma vez tinha visto. Começou a sentir-se mal:
- Pai, o que é isto? – Insistiu.
- Meu filho, nem quero proferir as palavras.
- Como assim, Pai, sabes o que isto significa?
- Isso agora não interessa, filho. Temos de limpar esta confusão, acredita em mim. Não podemos permitir que a Jessica e a Dona Francisca vejam este… terror.
- Mas, Pai…
- Raios, Martim! Faz o que te digo! Depois falamos!
- Mas faço o quê?
- Pega na cabeça do Fonseca e mete-a dentro do caixão! Eu vou tirar esta estaca daqui e tapar a mancha de sangue com um tapete qualquer. Vá, depressa!
Depressa… Era fácil de dizer. Enquanto o pai se despachava nas suas tarefas, Martim Júnior contemplava enojado a fava que lhe calhara.
Com muito jeitinho, e muito nojo, começou a tentar tirar do espeto a cabeça careca de Fonseca. Martim estava horrorizado, enojado, nervoso. As suas mãos suavam e não tinham qualquer aderência na careca do pobre do seu futuro sogro; por mais que puxasse, as mãos escorregavam até se juntarem no alto da decepada pinha.
Martim Sénior, que já tinha retirado a estaca do caixão e procurava por um tapete, interpelou-o:
- Ó Martim? Mas tás parvo? Pára lá de bater palmas e faz o que te mandei!
- Ó Pai, não estás a ajudar nada!
Martim Júnior chegou à conclusão que tinha de puxar pelas orelhas do Fonseca para levar a cabo a tarefa. Puxem vocês pela vossa cabeça para perceberem a ideia completa.
Quando finalmente retirou a cabeça do espeto, ouviu-se um “poc”, como uma rolha a sair da garrafa. Martim Júnior começava a entrar em desespero, era de mais.
Com os braços na horizontal, com a cabeça do pobre Fonseca o mais afastada possível, Martim finalmente chegou ao caixão; ia a medir os passos porque tinha fechado os olhos.
Infelizmente, abriu-os para pousar o crâneo. Foi demais para ele; não conseguiu conter-se e vomitou o pequeno-almoço por cima do cadáver.
III – Filho único de outro deus
Os habitantes presentes no velório regressaram a suas casas. A Dona Francisca e Jessica foram pernoitar na casa da irmã da Dona Francisca, a Dona Alípia Tomás Tesmurchos.
À semelhança da irmã, a Dona Alípia também se tinha casado com um presidente da câmara, cujo mandato terminara há 4 anos; o Honorável Doutor Antunes Tomás Tesmurchos, infelizmente já falecido e o último da sua linhagem; ao contrário de Francisca e Fonseca, a família Tomás Tesmurchos não teve qualquer filho, o que constituía o único desgosto de Alípia no seu casamento com Antunes.
Alípia nunca percebeu porquê e tornou-se numa pessoa triste e deprimida, culpando-se a si própria pelo fracasso perante o marido. Mas era uma pessoa muito carinhosa e adorava Francisca, sendo mais do que uma tia para Jessica. Amava-a perdidamente e tratava-a como se fosse filha dela.
Drácula ignorava todos estes factos. Nessa noite, voou até à casa de Jessica e aterrou suavemente no telhado. Com a agilidade de um animal selvagem, aproximou-se da janela do quarto de Jessica; pendurado de cabeça para baixo, espreitou.
Nada. Nem sinal da formosa criatura, mas Drácula não desistiu. Silenciosamente, forçou o trinco da janela e entrou no quarto.
Ainda nada. Drácula espreitou por baixo da cama e dentro do armário, por descargo de consciência, mas nada. Pensou que Jessica teria ido à casa de banho, mas mudou de ideias quando viu a vela apagada na mesa de cabeceira; certamente que não se levantaria sem acender a vela e levá-la com ela.
Drácula NUNCA desiste.
Lentamente, abriu a porta do quarto e começou a percorrer o corredor do 1º andar. Espreitou à fechadura do quarto de Fonseca e Francisca, mas nada. Repetiu o gesto no quarto de hóspedes, mas nada. O mesmo na casa de banho.
Mas Drácula… não conhece a palavra DESISTIR.
Sem fazer ruído, desceu as escadas; procurou na cozinha, na sala de jantar e no escritório; em vão.
Faltava a sala de estar. A sala onde estava o corpo de Fonseca. Ao aproximar-se, reparou na luz trémula por baixo da porta; imaginou que a família Galhão estivesse reunida numa sessão de leitura, pelo que abriu um pouco da porta para se poder certificar.
Como não viu ninguém, entrou na sala.
Quando finalmente encarou com o corpo de Fonseca dentro do caixão, recuou rapidamente e encostou-se de costas à parede. Visivelmente alterado e sem tirar os olhos do caixão, saiu do quarto às arrecuas sem fazer qualquer ruído.
Drácula NUNCA se detém.
Rapidamente foi à arrecadação, onde partiu um candeeiro de pé alto ao meio e de onde retirou um machado de lenha; munido dessas três peças, voltou a entrar lentamente na sala de estar, detendo-se perto do caixão.
Poisou o machado e a base do candeeiro no chão, erguendo ao alto e na vertical a outra metade do candeeiro; apontou-a ao coração do defunto.
De súbito, gritou:
- SATANÁS TEM SÓ UM FILHO E SOU EU QUEM LHE ESCOLHE OS NETOS!
E ao proferir estas palavras, enterrou violentamente a estaca no coração frio e morto de Fonseca.
- MORRE, BASTARDO!
Empurrou a estaca mais para dentro com um golpe violento.
- MORRE, IMUNDO!
Voltou a golpear Fonseca, desta vez com tanta força que a estaca trespassou o corpo e o caixão. Deixando a estaca naquela posição, pegou de imediato no machado e elevando-o ao alto, com um só golpe cortou a cabeça do defunto gritando:
- EU SOU VLAD, O EMPALADOR! ESPERA-TE A HORRÍVEL ETERNIDADE JUNTO DE SATANÁS, MEU PAI, QUE DE TI NÃO TERÁ PERDÃO.
Pegou na cabeça decepada e espetou-a na base do candeeiro; deslizou escadas acima e saiu a voar pela janela do quarto de Jessica.
O sol estava prestes a nascer. Drácula apressou-se a regressar ao castelo, fortemente determinado a resolver o mistério com que se deparara e a descobrir o paradeiro de Jessica.
Ao chegar, encontra Igor no estábulo:
- Igor, algo correu mal.
- Ããããããããh! Ããããããããh! Ããããããããh!
- Não encontrei a Jessica.
- Ããããããããh! Ããããããããh!
- O pior é que dei de caras com outro vampiro. Como pode haver nestas paragens um vampiro que não tenha sido criado por mim?
- Ãh! Ããããh! Ãh! Ãhã! Ãhã! Ãhã!
- Mas não me deixei ficar, matei-o ali mesmo, no seu caixão. O bastardo.
- Ããããh! Ããããh! Ããããh! Ããããh!
- Tenho de tirar isto a limpo, Igor, algo se passa que não está sob o meu controlo. Preciso de saber o que raio se passa.
- Ãhf! Ãhf! Ãhf! Ãhf! Ãhf! Ãhf! Ãhf!
- Mas por agora, só a Jessica me interessa. Por isso, preciso que faças algo por mim, meu fiel servidor.
-Ãhã! Ãhã! Ãhã! Ãhã! Ãhã! Ãhã! Ãhã!
- Amanhã de manhã vais na charrete para a aldeia, e só sais de lá quando vires a a Jessica e descobrires onde vai dormir.
- Ãh! Ãh! Ãh! Ãh! Ãh! Ãh! Ãh!
- Espero poder contar contigo, Igor, se não…
-Ãnhã! Ãnhã! Ãnhã! Ãnhã! Ãnhã! Ãnhã!
- Limpaste o pó, como te disse?
- Ãh! Ãh! Ãh! Ãh! Ãh! Ãh! Ãh! Ãh!
- Óptimo. Bom, vou-me deitar. Pára de violar o cavalo e veste as calças,
já não suporto ouvi-lo a relinchar.